Por Ricardo Alexandre
Tem
Bahia como nunca e tem rock como sempre no quinto álbum de estúdio de Pitty,
mas, antes de colocar “MATRIZ” (Deck) para rodar, convém desmontar a “roqueira
baiana Pitty”, conforme dizíamos, na falta de referências melhores, nos tempos
de “Máscara”, os tempos dos prêmios da MTV Brasil, os tempos da menina de testa
franzida se impondo no ambiente "testosteronado" do rock alternativo
brasileiro do início dos anos 2000. Dezesseis anos depois, o que não nos falta
são (boas) referências sobre ela: todos os hits, todos os mega-hits (“Me
Adora”, “Equalize”), os temas em novela, as indicações ao Grammy Latino, os
projetos paralelos, os shows internacionais, os shows nos grandes festivais, a
apresentação do Saia Justa, a maternidade — tudo trilha para um mundo em
velocidade tão alta que fez de Pitty, ao mesmo tempo, a jovem representante da
última geração do rock brasileiro que se atreveu a ir de encontro ao gosto
popular e a veterana que detém a receita do sucesso aparentemente perdida em
algum lugar dos anos 1980, 90 ou sabe-se lá onde.
É
esse o ponto muito especial em que “MATRIZ” chega aos nossos ouvidos.
Não
parece acaso que o álbum soe como um grande e multicolorido álbum de fotos em
diferentes paisagens que revele tanto sobre os olhos, a alma e as raízes de
Pitty. E, apesar disso, não há o menor cheiro de naftalina ou nostalgia careta
no repertório: “Eu vim de lá, mas não posso mais voltar”, como ela canta em
“Bahia Blues”, sendo justamente o que lhe permite cantar “Eu vim de lá e agora
eu posso voltar”. Como Peter Gabriel que defendia que “nós precisamos entrar
para poder sair”, Pitty olha o tempo todo para dentro de si e de sua história
para encarar o mundo a sua volta.
O
que inclui, claro, o rock à sua volta. Da participação do BaianaSystem em
“Roda”, uma das músicas mais pesadas do álbum, à dançante “Noite Inteira”, tudo
soa fresco, contemporâneo, relevante, completamente 2019.
Mas
me deixe começar do começo. No caso, “Bicho Solto”, sombria, enigmática, quase
uma declaração de princípios (“eu me domestiquei pra fazer parte do jogo/ mas
não se engane, maluco, continuo bicho solto”). Você vai achar Dorival Caymmi
sampleado, psicodelia, percussão corporal, trip-hop, Raul Seixas, matas fechadas
e arranha-céus, e você estará no caminho certo. “MATRIZ” é justamente sobre
possibilidades de trilhas; sobre como Pitty, depois de deixar sua marca
pressuposta no cenário brasileiro, descobriu ser capaz de trilhar todos os
caminhos com a mesma propriedade.
Há
um lado no álbum irremediavelmente pop — no sentido de ser irresistível,
ganchudo, chicletudo como todo mundo sabia que Pitty podia ser, mas talvez só o
tempo tenha dado a segurança para que ela assumisse totalmente. A dançante
“Ninguém É De Ninguém” (curiosamente, uma parceria com seu esposo, Dani
Weksler) soa como um ska cyberpunk, enquanto a lisérgica e barroca balada
“Motor”, que leva a original (lançada pelo grupo baiano Maglore em 2013) ao
espaço sideral. Já a doce “Para O Grande Amor” esconde um amargo tributo a Peu Sousa,
guitarrista e parceiro de Pitty entre 2002 e 2005, morto aos 35 anos, em 2013.
Embora
não seja uma palavra mencionada nenhuma vez ao longo de todo o álbum, a ideia
de estarmos diante de uma “MATRIZ” realmente percorre completamente o trabalho.
No sentido indisfarçável de estarmos diante de uma mulher segura e orgulhosa de
sua maturidade (quem vai dizer que não tenha a ver com a maternidade?). No
sentido em que há as imagens e os sons que remetem à Bahia de sua infância e os
sons da sua adolescência, ao reggae e à new wave. Às raízes negras de todos nós
– humanos – no canto afro-soul de Lazzo Matumbi em “Noite Inteira” ou a
capoeirada moura de “Redimir”. Mas também porque é torno da Matriz onde os
amigos se encontram – para fazer revolução ou falar besteira. E há tantos
amigos presentes no álbum, como Pupillo (ex-Nação Zumbi), Larissa Luz e Marlon
Sette, em volta da banda que está em turnê desde 2018 — Pitty nos vocais,
Martin na guitarra, Gui Almeida no baixo, Paulo Kishimoto numa variedade de
instrumentos e Dani Weksler na bateria.
“MATRIZ”
é Pitty como seus fãs esperavam há meia década, e é o álbum mais surpreendente
de sua carreira. Um projeto conceitualmente bem amarrado e o coeso, e o
trabalho mais variado, tropicalista, multifacetado que alguém poderia esperar
dela. Fiel às arestas cortantes das raízes hardcore e pop de ensinar sua filha
a cantar no caminho da escola. Futurista, concreto, areia e dendê. É a prova
definitiva de que, com tanto tempo de carreira e tanto sucesso acumulado, Pitty
se domesticou. Mas, claro, continua sendo bicho solto. Soltíssimo.
“MATRIZ” já está disponível em todas as plataformas digitais e será lançado também em CD, vinil e cassete pela Deck.
>> Ouça o álbum:
>> Assista o clipe "Te Conecta":
>> Assista o clipe "Noite Inteira":
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